O Jardim da Minha Baba une amor de avó e neto com poesia – 04/05/2024 – Era Outra Vez

Quando a dupla de canadenses Jordan Scott e Sydney Smith resolve se juntar num projeto, é sempre bom prestar atenção.

Scott é poeta e costuma fazer a sua literatura desabrochar quando escreve para crianças. Já Smith acaba de ganhar o Hans Christian Andersen na categoria para ilustradores, prêmio que é considerado o Nobel da literatura infantojuvenil. Mas não são os currículos de ambos que fazem seus livros merecerem uma espiada.

Os dois são autores de “Eu Falo Como um Rio”, publicado no Brasil em 2021 pela Pequena Zahar. A obra, uma das narrativas ilustradas mais potentes e delicadas dos últimos anos, apresenta um relato pessoal de Scott, que transforma em literatura a gagueira que teve na infância.

A cada página, uma pergunta parece ficar sempre represada, engasgada: o que você faria se suas palavras estivessem presas? Para ilustrar, Smith apresenta imagens inteligentes, nas quais cria distorções visuais quando o protagonista não consegue se expressar ou encontrar as frases que quer usar.

Agora, eles retomam a parceria em “O Jardim da Minha Baba”, recém-lançado pela mesma editora. Mais uma vez, os holofotes são apontados para a vida do escritor, os ruídos da fala e outras formas e possibilidades de comunicação, que enchem a edição com uma história da qual transborda sensibilidade.

Na trama, o menino narra a sua relação com a avó, ou com a Baba, como prefere chamá-la. Todos os dias, ele vai logo cedo até a casa dela, onde come uma imensa tigela de mingau enquanto vê a mulher cozinhar.

Ao contrário do que seria clichê, as personagens pouco conversam verbalmente. Mas a comida e os pequenos gestos se infiltram no diálogo e ocupam o lugar das palavras. Mingaus, potes de conserva, cabeças de alho, beterrabas e batatas fervendo nas panelas acabam funcionando como palavras. O ritual de recolherem juntos minhocas na terra molhada se torna frase, bate-papo, tagarelice.

Um dia, quando a avó já aparenta estar debilitada e passa a morar na casa do garoto, tudo se inverte. É ele quem entrega mingau e maçã para ela. Sai na chuva, sozinho, enquanto a Baba olha pela janela. “Ando devagar”, diz o menino. “E pego todas as minhocas que consigo.”

O livro ganha novos degraus quando chegamos ao posfácio, no qual Scott conta que a narrativa é inspirada na relação com sua Baba de verdade, uma polonesa que fugiu da Europa por causa dos horrores da Segunda Guerra Mundial e que nunca aprendeu a falar bem inglês no Canadá.

Essa densidade, que ecoa a fome, os campos de concentração, as migrações forçadas, as mortes dos conflitos, a reconstrução da vida longe de casa, ganha toque final com as imagens de Smith. Criadas com uma técnica aquarelada, as ilustrações amplificam o efeito literário ao escorrer pelas páginas cenas molhadas de chuva, terra úmida, pingos e gotas.

Tudo é líquido no livro. Se as palavras secam, o afeto transborda e irriga. É claro que há diferenças, mas é mais ou menos o que também ocorre em “Eu Falo Como um Rio”, no qual a correnteza se torna fundamental para cheia de palavras da personagem gaga.

Já em “O Jardim da Minha Baba”, essa água não molha apenas o amor entre avó e neto. Cria também raízes que conectam as personagens aos leitores. Quando terminamos de ler, a Baba já não é parente apenas do menino, de Scott ou até de Smith —ela também se torna um pouco a nossa própria Baba.


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